Povoados historicos na altitude
por Valmir Roza Lima
Em 2017, depois de uma temporada viajando de õnibus e visitando várias Missões Jesuiticas, na região de Chiquitos na Bolivia, eu e a Sandrinha, resolvemos ir pra Cochabamba e Oruro, pra conhecer um pouco mais do folclore Boliviano.
Depois de vários dias, já cansados de perambular pelo interior da Bolivia, finalmente chegamos em Oruro, a última parte da viagem.
Combinamos que a Sandrinha voltaria para o Brasil de ônibus através de Santa Cruz, e eu compraria uma bicicleta, pegaria um trem que me deixaria próximo à Argentina e iria pedalando até Salta, pra rever meus amigos Argentinos.
Eu queria rever os povoados que eu tanto amo em " La Quebrada", mas também tinha dois outros bons motivos pra fazer essa viagem.
Carlos, um dos amigos de Humahuaca, companheiro de duas peregrinações que eu já fiz por essas montanhas com a Virgem de Cuchillaco, sofreu um grave atropelamento, há dois anos atrás e ficou muito mal, grave mesmo, e eu ainda não o tinha visto depois do acidente.
O outro motivo é que eu queria conhecer a Maria Vuksanovich, uma moça que vive em Salta e que há uns anos atrás lutou e conseguiu organizar o "Primeiro Encontro de Luthiers em Salta". Além de trabalhar com música ela também é apaixonada por bicicleta.
Nos últimos dias em Oruro, eu perambulei por vários bairros, lojas e feiras até conseguir comprar uma bicicleta rasoavel pra atravessar a região de " La Quebrada" que é praticamente um deserto salpicado por alguns povoados.
Barraca e material de camping e sobrevivência já estavam em minha bagagem, fiz meu último almoço com a Sandrinha e embarquei num trem que em 16 ou 18 horas me deixaria em Villazon, fronteira com a Argentina.
Alguns trechos são intranponíveis no pedal.
A viagem de trem de Oruro a Villazon é muito bonita, mas deve ser feita durante o dia, pois o trem passa pelo " Salar de Uyuni" que fica naquela parte da Bolivia que tem um cenário futurista, com cores e texturas que só existem alí. O trem também é muito legal, dividido em duas classes, a mais cara onde só viajam estrangeiros é bem chata, pois só viajam Europeus, e eles só conversam entre sí. Já na classe econômica, viajam os locais e são muito curiosos e conversadores, eu gosto de conhecer gente nessas ocasiões...só viajo na classe econômica.
Cheguei em Villazon pela manhã e caminhei pela cidade a procura de um café da manhã.
Eu já estive em villazon em 2010, mas agora a cidade estava muito diferente,caminhei pelo mercado, conheci o novo terminal de bus e gostei das mudanças que vi, ela continua com aquele jeito de cidade pequena de fronteira, com muito comercio e centenas de turistas Argentinos à procura de artigos baratos.
Resolví dormir e descansar em Villazon nesse dia.
Meu primeiro dia de pedal na estrada, não foi muito produtivo.
Descobri logo no começo da viagem que a altitude seria um problema sério e que eu deveria mudar a estratégia imediatamente.
Apesar de já estar acostumado a viajar em altitudes elevadas, é o primeiro pedal que eu faço a mais de 3.400 metros. A respiração começa a ficar mais difícil e o cansaço é mais acentuado.
Comecei intercalando 15 minutos de pedaladas e meia hora de caminhada, pois é símplismente impossível pedalar mais de 15 minutos seguidos, talvez no segundo ou terceiro dia o corpo já apresente algum tipo de adaptação à altitude.
A altitude não é a únicara dificuldade nessa parte da Argentina.
Pra quem não sabe, essa é a parte Andina da Argentina, pois faz parte da Cordilheira dos Andes, com todas as suas características geográficas e culturais.
Encontrei muita dificuldade também porquê de Villazon até Humahuaca, o clima é árido, muito seco e existem poucos povoados pelo caminho. São uns 160 km de sol bem quente, pouca água e lugar pra comprar alimentos, tudo isso, pedalando na altitude, onde só se avança uns 20 Km por dia.
Logo no começo da viagem, eu já estava arrependido, pedalei uns quatro dias nessas condições, depois o corpo foi se adaptando e o sofrimento foi se tornando suportável.
No começo da viagem até que haviam algumas árvores secas na beira da estrada, mas no primeiro dia mesmo as árvores sumiram e o sol castigou forte, começou um deserto de dar medo, não havia nem aves pra quebrar a monotonia, e ainda tinha o perigo das Lhamas.
Quem acredita que Lhama é um bicho fofo, pode esquecer.
Quando elas estão em turma em seu ambiente natural, ficam agrupadas pastando, mas sempre tem uma de sentinela, se você passar batido não terá problemas, mas se parar perto do grupo, pra tirar foto ou algo assim, vem logo a sentinela correndo em sua direção.
Eu ví esse grupo muito fofo das fotos acima e parei pra observa-las com calma, quase caí da bicicleta, pois veio essa preta grandona correndo em minha direção.
Eu não sei como elas atacam, creio que gospem e mordem a pessoa, não fiquei pra conferir.
Toda vez que eu passava por um grupo de Lhamas na beira da estrada, a sentinela ficava me encarando até eu ir embora.
De volta ao deserto, o que mais me incomodava nessa região era a falta de sombra, eu procurava em vão uma pequena sombra toda vez que queria comer algo, mas no final tinha de comer embaixo do sol mesmo.
Eu estou acostumado a viajar de carro , onibus ou bicicleta por esses caminhos dos Andes, como Perú, Chile, Bolivia, Argentina ou até mesmo no Chaco Paraguayo. Uma coisa é comum a todos eles.
Quando o viajante tem algum tipo de problema, principalmente em lugares isolados, recorre a três instituições : Pede pousada na Igreja, na Escola ou por fim, na Policia. Um desses três órgãos vai te ajudar.
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Estrada Solitária
Os primeiros dias demoravam uma eternidade pra passar, pedalando na altitude, debaixo de um sol infernal,e a certeza de um deserto que demoraria dias ainda pra ser atravessado até chegar em Humahuaca, que é onde a viagem ficaria mais prazerosa, pois dali em diante a altitude começaria a baixar e eu tenho alguns amigos na região.. O que realmente preocupava era que a viagem estava apenas começando e eu já estava exausto.
Depois de atravessar a fronteira Bolívia x Argentina em direção ao sul, com cinco horas de pedal, o primeiro povoado é "Pumahuasi", pequeno e silencioso, casas fechadas e pessoas que evitavam conversar com estranhos em pequenas ruas desertas. Foi uma aventura encontrar uma casa onde se vendia água, pois eu não poderia entrar no deserto sem pelo ou menos uns tês litros, comprei também umas maçãs.......nesse tipo de viagem eu economizo a água de maneira que três litros dura uns cinco dias, não dá pra levar muita água pois pesa muito na bagagem.
A viagem foi se arrastando sofridamente, passei por La Intermedia, Puesto del Marques e vários povoados menores até chegar a Abrapampa.
Sempre acampando e cozinhando na beira da estrada.
Porém em Abrapampa eu me dei de presente um grande PF, pra matar a saudade, arroz, macarrão, bife de Lhama,batata frita e ovo......depois de dias comendo polenta com mortadela, foi um néctar.
Abrapampa é famosa por ser o povoado mais alto da Argentina, mas dali em diante a altitude começaria a estabilizar, pra baixar mesmo de Humahuaca em diante.
Pelo fato da altitude e do calor, atrasarem o meu avanço, pedalei uns 3 dias antes de chegar a Humahuaca.
Passei por uns três povoados pequenos, e por um posto militar, onde fiz amizade com os soldados que ficam alí num lugar isolado, sem cidade por perto e debaixo de um sol torturante, com fardas e coturnos, porém foram muito simpáticos e voluntariosos comigo. Creio que eles ficam controlando gente e mercadoria que passam por alí vindos da Bolivia.
De Abrapampa até Humahuaca, o maior povoado é " Tres Cruces".
Há uns 30 Km antes de chegar a Humahuaca, passei por Churrillos, e em frente a uma escola rural a qual em 2015 eu doei uma bicicleta, barraca e alguns materiais de camping, como sempre faço ao final das viagens de bicicleta.
Pena que por ser umas cinco horas da manhã, a escola estava fechada, mas eu fiquei feliz pois essa escola sinalizava que eu já estava perto de Humahuaca.
Geralmente eu começava a pedalar muito cedo, umas quatro ou cinco da manhã, pois era mais fresco, às nove da manhã o sol já judiava de quente.e durante o dia não havia sombra pra se esconder.Isso iría me dar problemas mais adiante.
Humahuaca
Finalmente, depois de muito pedalar eu entro em Humahuaca.
Mil lembranças vem em minha mente, um misto de cansaço, fome e alegria.
Fui ao teminal de bus, pois sabia que não encontraria algo pra comer mais barato do que alí, e depois de saborear um choripan enorme, comecei a passear pelas ruas estreitas empurrando a bicicleta.
Não demorou muito, encontrei meu amigo Orlando German, que estava caminhando pelas ruas. Surpreso por me ver, me deu um abraço, conversamos um pouco, trocamos telefone e nos despedimos.
Depois de matar as saudades passeando pelo mercado, estava cansado e procurei um Camping pra me instalar e descansar o esqueleto.
Atravessei a ponte e entrei no quintal de um camping mas percebi que do outro lado da cerca, haviam uns homens sentados conversando na sombra de uma arvore . Não me importei e fui entrando pelo quintal.
Porém uma voz me parecia familiar, olhei com mais atenção me aproximei e não pude acreditar, alí estava Beto ninaja conversando com uns amigos.
Beto Ninaja, é um amigo que eu conheci em 2015 e já participamos de duas peregrinações a Cuchillaco juntos, uma festa em que subimos uma montanha e ficamos acampados durante alguns dias na montanha com missas campais comida coletiva danças e musicas folcloricas.
Na verdade, ele é quem me levou nas duas vezes e quase tudo o que eu sei de como me locomover por essa região eu aprendi com ele e sua familia, coisas de comida, plantas, costumes e tradições nortenhas.
Ficamos surpresos, nos abraçamos e rimos muito. Eu estava aliviado, pois sabia que não estaria mais sozinho.
Fiquei em Humahuaca uns 3 dias pra descansar e rever alguns amigos.
Descansei bastante comi bastante e dormi muito. Três dias de vadiagem me preparando pra pedalar o resto do caminho até minha querida Salta.
Afora as mudanças normais que o tempo impõe a esses povoados, não vi muita modernagem em Humahuaca, e gostei muito de revê-la toda cheia de estudantes, velhos, turistas portenhos e crianças correndo por suas vielas de pedra.
Na noite de minha despedida, fui convidado à jantar na casa de Beto Ninaja, encontrei alguns amigos e comi um macarrão delicioso com enormes pedaços de carne preparado por Marcelo, meu antigo companheiro de peregrinação.
Saí de Humahuaca pela manhã, a minha parte preferida do dia.
Pedalei sob o sol suave da manhã, já em uma altitude mais baixa e com menos cansaço.
Passei por Uquia, comprei umas bananas e comi sob a sombra da igreja.
A manhã parecia perfeita e tudo estava calmo, eu mal desconfiava que acontecimentos sinistros estavam por vir.
Depois de me distanciar uns dez quilômetros de Uquia, senti que meu pneu traseiro estava vazio. Conferi e ele estava mesmo furado.
Como eu sempre tenho camaras reservas, parei pra trocar o pneu, uma operação simples.
Pneu trocado, fui alegre e sorridente pedalando, até que quinze minutos depois estourou o pneu dianteiro.
Eu não acreditei, pois pneu furado não é muito normal. Na viagem que eu havia feito em bicicleta de Florianópolis até São Paulo em 2010 eu furei um só pneu, pedalei de Salta até humahuaca em 2014 e não furei nenhum pneu, pedalei de Foz do Iguaçú até Posadas e também não furei nenhum pneu.
Era inacreditável que em meia hora eu furasse dois pneus....algo estava errado, mas eu não sabia o que era.
Depois de me arrastar por uns kilômetros eu encontrei um borracheiro que consertou as camaras de ar e eu segui viagem.
Finalmente cheguei em Tilcara, povoado turístico muito famoso que conserva também aspectos culturais de seus povos originários.
Não é a primeira vez que venho por aqui, mas notei mudanças drásticas no modo de vida dessa gente. Um dos meus campings favoritos "El Jardim" estava muito caro, o povoado estava qualhado dessas scooters, correndo e fazendo barulho o tempo todo.
Já pela tardezinha, pedalando pelas vielas e procurando um camping mais barato, tive outro pneu estourado. o meu psicológico já começava a ficar abalado.
Procurei a única bicicletaria que havia em Tilcara, mas estava fechada e desativada, pois seu dono havia virado atleta proficional de montain bike.
Eu já estava sem esperança quando fui pra beira da estrada e entrei numa borracharia e pedi um conselho, pois em Tilcara não há lojas, eu estava a pelo ou menos uns cento e poucos quilômetros de uma cidade granda "Jujuy" e eu precisava de camaras e pneus novos. Estava sem saída.
O dono da borracharia tinha o telefone do tal ex dono da bicicletaria, e o chamou pra ver se me ajudava.
Depois de alguns minutos o homem chegou e me explicou o problema, olhando a minha bicicleta, em um minuto ele matou a charada: como eu havia comprado a bicicleta em Oruro, eu estava pedalando um mixto de bicicleta com peças Chinesas e Bolivianas, quer dizer as peças eram de muito baixa qualidade, pois na Bolivia eles barateavam o máximo na montagem, pra o produto final não ficar muito caro.
Isso quer dizer que os pneus e as camaras eram de baixa qualidade e teriam de ser trocados. Trocamos todos os pneus e camaras, e aí é que veio a facada, creio que gastei quatrocentos pesos, mas fiquei com a bicicleta inteira novamente.
Agora, com a bicicleta arrumada, eu teria de dormir na rua pra economizar o dinheiro e reequilibrar as finanças, pois gastei um dinheiro que não estava previsto.
Fui pra rodoviária, pois sabia que lá tinha a sopa mais barata do povoado, e eu não estava nada animado pra cozinhar, depois de todos esses contratempos.
Depois de tomar a sopa, eu estava decidido a dormir ali mesmo nos bancos do terminal de bus, mas a minha intuição falou mais forte.
Eu já conheço e ando por essa região desde 2010, pelo ou menos uma vez por ano eu estou por essas bandas, e nunca tive problemas de segurança, mas nessa noite em Tilcara, eu senti que ia ser roubado. Quem mora em São Paulo, não se aperta em lugar nenhum e eu conheço um ladrão, pelo jeito de andar.
Sentí que haviam dois elementos esperando eu dormir pra entrarem em ação, então resolvi dormir num banco de praça que fica em frente à comissaria de plolicia. Tive uma surpresa, pois teve ocorrências a noite toda. muitas scooters apreendidas sem documento, e muitas mães, vindo buscar filhos que eram pegos sem documentos correndo com essas scooters, que se tornarm uma verdadeira febre em Tilcara.
Acorrentei minha bicicleta num banco, peguei o saco de dormir e me aninhei ali mesmo, e fiquei meio dorme-não dorme até o dia seguinte.
Depois de uma noite tenebrosa na minha querida Tilcara, que até hoje só tinha me dado bons momentos, saí pedalando em direção a Maimará, disposto a tomar um bom café e esquecer os maus momentos da noite anterior,
Maimará, pela manhã é muito bonita e acolhedora, depois de algumas iniciativas nos últimos anos, como uma rotunda nova , um centro cultural e uma revista nova editada na cidade, está se tornando o que Tilcara foi no passado, um povoado acolhedor em que os turistas se sentem bem tratados.
Passei por Maimará e continuei o pedal em direção a Tumbaya , pequeno povoado em que eu já havia dormido numa viagem anterior, e também de onde todo ano parte uma peregrinação famosa na região.
Por volta de 1600, um padre que tocava Rabecas , viajou a pé de Santiago Del Estero "Argentina" até Lima "Perú" fundando vilas e construindo igrejas pelo caminho, reunindo os nativos com a ajuda de sua Rabeca. Tumbaya é um desses povoados onde ele passou, descansou e foi isso que me trouxe aqui pela primeira vez há alguns anos atrás.
Depois de passar por Tumbaya e me reabastecer de água, pão e mortadela eu segui em frente sempre pedalando sob um sol cruel.
Surpresa !!!!! um pouco antes de chegar em Volcan, um carro buzina, para à minha frente e começa uma gritaria !! era o Beto Ninaja e sua famìlia que estavam indo pra Jujuy. Paramos ali na estrada, tiramos uma selfie e rimos muito. Depois disso seguimos nossos caminhos, Beto rumo a Jujuy e eu pedalando em direção a Volcan.
Meu Deus ! Volcan há cerca de um ano atrás havia passado por uma tragédia terrìvel, uma avalanche de lama, que desceu das montanhas e cobriu parte do povoado. Eu já tinha ouvido falar nisso, mas passando ali e vendo aquelas montanhas de entulho na beira da estrada, me chocou um pouco. volcan ainda não havia se recuperado.
Ainda um pouco chateado, segui em frente sabendo que dali em diante, a altitude ia baixar um pouco, pois logo viria " Barcenas", uma descida de quase 10 kilômetros , que baixaria a altitude em uns mil metros.
Eu já estava com o organismo totalmente adaptado, pois desde Humahuaca a altitude vinha baixando. Alí estava eu, passando por Yala em direção a Jujuy.
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